quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Criminologia e Arte: incursões sobre o Presídio Central de Porto Alegre - o caso do projeto "Direito no Cárcere"


Renata Guadagnin
Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Bolsista de Iniciação Científica (BPA/PUCRS). Pesquisadora voluntária sobre o tema “Criminologia e Arte” (sob orientação do Prof. Dr. Augusto Jobim).

Augusto Jobim do Amaral
Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História Política e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra. Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Pesquisador convidado do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra.



CRIMINOLOGIA E ARTE: INCURSÕES SOBRE O PRESÍDIO CENTRAL DE PORTO ALEGRE - O CASO DO PROJETO "DIREITO NO CÁRCERE"


Resumo: Através de um estudo interdisciplinar nas ciências criminais, o trabalho vislumbra problematizar o controle social e a sociedade excludente principalmente no que toca o sistema prisional brasileiro. Para tanto, realiza um diálogo entre arte e direito, através do exemplo encontrado no Projeto “Direito no Cárcere” realizado no Presídio Central de Porto Alegre. Com o intuito de sensibilização aos direitos humanos, esta tentativa pretende ser, quando não uma alternativa à judicialização da vida, um importante experiência que faça sentido à (sobre)vivência nestas condições-limite. Expor a situação atual do Presídio Central de Porto Alegre e a inserção do Projeto “Direito no Cárcere”, não pode ter outro fim que se afasta da radical dimensão de possibilitar, dentro do cotidiano carcerário, ainda captar ecos de um futuro em vozes que já emudeceram.

Palavras-chave: Sistema Prisional. Controle social. Direitos Humanos. Arte. Direito.

Abstract: Through an interdisciplinary study in criminal science, the work presents problematize social control and exclusionary society especially as regards the Brazilian prison system. The study presents a dialogue between art and law, through the example found in the Project "Right in Prison" held at Central Prison in Porto Alegre. In order to raise awareness of human rights, this attempt aims to be, if not an alternative to legalization of life, an important experience that makes sense to (over) living in these boundary conditions. Expose the current situation of the Central Prison of Porto Alegre and the insertion Project "Right in Prison," can have no other end away from the radical dimension of enabling inside the prison everyday, even capturing echoes of a future that has already silenced voices.

Keywords: Penitentiary System. Social Control. Human Rights. Art. Rights.



“As cadeias estão cheias de pobres.
Nelas o rico não fica. Será que a justiça
é mesmo cega? Ou será também que ela é rica? Se ela é cega estou disposto a me sacrificar dou a ela meus dois olhos para ela começar a enxergar”[1].


INTRODUÇÃO


Desde o nascimento da instituição carcerária, nos séculos XV e XVI[2], identifica-se sua decadência e falência. As tentativas de reinvenção do cárcere, ao longo dos séculos, foram meras reproduções do mesmo sistema falho[3]. No Brasil, particularmente, tal malha tem se mostrado particularmente uma potencializadora e reprodutora de desigualdades: reproduzindo mais do mesmo – reflexo de uma perene acumulação para alguns e mais marginalização à massa indiferenciada. O momento atual do sistema prisional brasileiro reivindica uma atualização permanente das investigações jurídicas, para além dos códigos e da jurisprudência, ultrapassando a letra fria da lei e exigindo um olhar atento à violência naturalizada.
Na intensidade da vida social, cenas comuns do cotidiano revelam a ineficácia da aplicação e execução da pena e, por consequência, dos direitos humanos. Por detrás das paredes dos presídios brasileiros é que se estará um local privilegiado para examinar a imensa extensão de danos causados pela sociedade excludente, geradora de um abismo entre lei e sistema prisional, entre direitos humanos e seu resguardo efetivo.
Visando fornecer outras possíveis abordagens, inclusive sob a perspectiva de mecanismos alternativos que garantam o desenvolvimento, a cidadania e uma real diminuiçãode danos na execução da pena diante daquilo que a tradicional doutrina convencionou chamar de ‘reinserção social’ ou ‘ressocialização’ do apenado, a aproximação do Direito com a Arte possui esteio privilegiado neste percurso. Ímpar instante de experiências plurais em que os próprios internos do Presídio Central de Porto Alegre (onde concentramos, em termos empíricos, nossa pesquisa) trazem vias inesperadas e alternativas de resistência para uma subjetividade minimamente sadia.  
A abordagem crítica do sistema carcerário brasileiro deve levar não a uma mera reflexão estéril, mas a um engajamento para modificação da realidade em que se verificam tais violações, ou propriamente, no plano prático, a uma construção de condições de resistência dos direitos humanos. De forma incisiva, cabe investigar o local de distanciamento social no qual foi colocado o cárcere, sendo indispensável uma aproximação do Direito com a realidade cotidiana para que se torne possível uma conformação social menos excludente, e faticamente menos indigna.
Para a compreensão deste abismo existente entre Sociedade e Cárcere, iniciaremos examinando de modo breve como o controle e a estigmatização investem sob as ditas formas sociais marginais e perfazem uma dinâmica de exclusão da diferença. Desta maneira, poder-se-á expor os traços essenciais do ambiente empírico da pesquisa, para além da sua localização geográfica e histórica. Atravessando os muros do Presídio Central de Porto Alegre, poderá se apresentar alguns dados relevantes para a compreensão do caos instaurado na casa prisional, demonstrando, não obstante, como a Arte neste contexto têm se tornado um possível instrumento de resistência cultural, de comunicação e sobretudo de encontro entre os encarcerados e a sociedade.[4]
Portanto, partindo de uma abordagem teórico-crítica do sistema carcerário brasileiro, indaga-se como a Arte pode contribuir para o resgate do amor-próprio e da identidade dos sujeitos afetados - Arte percebida como experiência de autoestima e cidadania, potencializadora de uma nova forma de lidar com suas próprias mazelas, dando voz ao silêncio que voa livre nos pensamentos, mesmo quando o corpo esbarra nos muros que degradam e tornam a (sobre)vivência um caos quase impossível de ser habitado.

1. SOCIEDADE, CONTROLE E CÁRCERE
Deve ficar evidente, de início, que o presente estudo não trata de discutir o quão eficaz é a privação de liberdade para fins do falacioso discurso da reinserção do apenado, trata-se, inarredavelmente, de defender o respeito à ética e aos direitos humanos. No entanto, o sentimento de vingança, retribuição ao mal cometido, ainda parece ser a regra geral numa sociedade excludente em que o apego ao senso comum dá-se a partir do “ladrão bom é ladrão preso/ou morto”. Esse sentimento de vingança e punição acaba por legitimar (“a vontade do povo”) o controle social a ser aplicado pelo Estado, com uso de seus atributos e poderes dispostos na Carta Magna. [5]
O controle social é aplicado nas relações entre as pessoas no que se refere, em princípio, ao momento anterior à punição, como uma tentativa de impor equilíbrio ao corpo social. Quando há a transgressão da lei pelo indivíduo, busca-se aplicar o controle social formal normativo como mecanismo de gestão estatal diante do sujeito que cometeu alguma conduta desviante[6]. Diante de um quadro de deslegitimidade[7] do sistema penal, bem como a recorrente violação de direitos humanos tutelados pela Constituição Federal, a privação da liberdade passou a ser mecanismo de neutralização de grupos incômodos à dinâmica de um Estado Liberal.[8]
A reiterada violação de direitos, o distanciamento criado entre sociedade e cárcere, bem como o descaso para com o momento de cumprimento de pena reflete-se diretamente na conduta que o sujeito desviante vai (re)produzir quando voltar ao convívio social. A falta de interação entre mundo externo e mundo interno da cadeia, senão pode negativa da indiferença, soterram as condições de admissibilidade do retorno do apenado ao convívio normal.[9] Há uma cultura de re-marginalização e não ressocialização do egresso do sistema prisional, um evidente distanciamento entre o cotidiano da cidade (e seu olhares) e o cotidiano carcerário (outro espaço, outro tempo, outras normas que se espreitam por detrás dos muros dos presídios). Nada surpreendente os índices de reincidência no estado do Rio Grande do Sul de 66%, segundo a SUSEPE-RS.[10] Há, portanto, profundos processos de estigmatização que precisam ser despidos.[11]
Como ensina Cirino dos Santos[12], o Estado não deve valer-se de mecanismos para separar os indivíduos entre bons e maus, ou ainda: entre cidadãos e criminosos. Pautado no ideal de igualdade perante a lei, o Estado, e todas as instituições que possuem atribuição de Poderes, devem primar pela igualdade de direitos e condições aos seus cidadãos, que o legitimam e esperam ser tutelados por ele, sendo necessário afastar a ideia do bem e do mal, como forma de construção de uma comunidade unificada valorativamente, livre de preconceitos e estigmas negativos, sem distinções qualitativas acerca de cidadãos e inimigos.
Assim, ao se analisar criticamente o sistema prisional brasileiro, rapidamente percebe-se que o discurso prisional (em especial da ressocialização) - instituição que vem sendo reinventada desde a Era Industrial e a invenção da fábrica mostra-se ineficiente e falacioso.[13]Tais ideologias “re”[14] apenas calcificam o distanciamento entre o olhar da sociedade e os muros do cárcere. Daí a necessidade de romper com este abismo, admitindo o outro como um ser dotado de subjetividade singular em si mesmo e que precisam ser respeitadas e admitidas em sua diferença.
O tratamento que vem sendo dispensado às relações jurídicas não raro fica limitado ao conjunto de regras e normas positivadas em códigos e que conduzem a esta série de estigmas sobre indivíduos bons e maus. Nada é mais cediço que a ineficácia em aprisionar um indivíduo porque delinquiu, para, posteriormente - após enfrentar as condições de miséria a que é exposto no cárcere - liberá-lo para a sociedade em extrema condição de vulnerabilidade, acentuada ainda mais dos tempos que lá entrou.
A dita sociedade de consumo implementada sob a ode do sistema capitalista intensificado no pós-guerra fortificou e impulsionou ainda mais a amarras de controle e difusão do poder punitivo sob as máscaras da democracia.[15] Quem possui o privilégio (financeiro) pouco está envolvido com as malhas da punitividade. Investir em prisões nunca foi prioridade do Estado até que se torna um enorme negócio o encarceramento em massa.[16] O poder do Estado, legitimado por uma Constituição social, avança seu braço punitivo para não servir à coletividade, mas sim para servir-se dela.  A punição soberana do Estado, reflexo da estrutural seletividade do sistema penal, recai inabalavelmente sobre o mais fraco: o pobre. A manutenção da pobreza é necessária para continuar com o atual modelo de “sociedade”, para manter a base da estrutura social que é, em essência, excludente.[17]
Todos estes novos paradigmas que surgem com a indústria do consumo fazem-se com clara hierarquia de valores: a propriedade inafastavelmente acaba prevalecendo sobre a vida. Felicidade vira sinônimo de ostentação e posse, e a competitividade mercadológica cria seus párias.[18] Ademais, assim temos toda uma gama da população excluída incapacitada de competir em função do condicionamento em que foram submetidos: educação pública sucateada, educação privada não raramente manipulada pela mera competição mercadológica, sustentando um enorme desequilíbrio reproduzido nas demais relações sociais.[19] Logo, a (im)possibilidade de consumo é tratada como (in)competência para quiçá conseguir um bom emprego, como se um estado natural das coisas impusesse as mesmas oportunidades a todos e estivéssemos apenas diante de desídia, de falta de esforço. Não obstante, nesta lógica, melhor será o tratamento penal - delinquência e poder intimamente correlacionados.
Segundo escreve Santos:
 “o que existe são temporalidades hegemônicas e temporalidades não-hegemônicas, ou hegemonizadas. As primeiras são vetores dos agentes que dominam a economia, a politica e a cultura, e os demais agente (...) hegemonizados pelos primeiros devem contentar-se com tempos mais lentos”.[20]

Frise-se, como refere o geógrafo brasileiro, que a velocidade é “imperativo das empresas hegemônicas” [21], mas a grande maioria da população vive de outra forma. O mundo concreto do homem comum é a cidade, especialmente a metrópole. “Na cidade existem áreas luminosas e opacas, e nestas últimas, vivem os pobres” e os sistemas paralelos, em seus “espaços da lentidão e não da vertigem”. É nestes espaços constituídos por formas não atualizadas que sobrevivem às classes sociais pressionadas pela globalização, personificadas no homem lento[22].
Desta forma e no mesmo sentido leciona Bauman que “os jogadores incapazes e indolentes devem ser mantidos fora do jogo. Eles são o refugo do jogo, mas um produto que o jogo não pode parar de sedimentar sem emperrar” [23]. Em uma sociedade sedenta por consumo, onde o medo e a insegurança imperam, a exclusão parte de um espaço vazio de Direitos para aquela vida protegida e ao mesmo tempo abandonada pelo sistema jurídico[24]. O contrato social que legitima o poder do soberano, como “uma grande metáfora da democracia”[25], consolida um Estado Direito exatamente para não abranger a vida nua, criando assim um Estado de Exceção continuo e cotidiano.[26]   
A ‘necessidade’ excessiva da criação de regras é, por si só, excludente e gera violência. Um excessivo controle, do soberano, sobre a vida do ser humano. O Direito é produtor de Exceção, tal como seu produto: o Estado Democrático de Direito. Aquele que soberanamente decide sobre o Estado de Exceção dita às regras está acima dela. O Estado representa o poder de decidir sobre as vidas que serão abrangidas e tuteladas pela lei, quem é “digno de viver a vida e quem não é”[27]. Trata-se da regulação “excepcional” do soberano sobre seus subordinados-sociais.
A regra, o excesso e a exceção, têm como propriedades em tempos líquidos de pós-modernidade o medo e a insegurança, resultando na fortificação do controle em nome da ordem publica ou social. O abuso de controle (e poder por suposto) gera repressão pura e simples, coação direta que recai tendencialmente aqueles que o comportamento desviante havia sido estigmatizado.
A relação da sociedade com o outro (aqui, naturalmente, ultrapassa e muito à referência do “criminoso”), eticamente deve respeitar sua condição radicalmente humana, para que qualquer “reinvenção do estatuto de cidadania” se torne possível, não se esquecendo que “no mesmo instante onde se criou a figura do cidadão, criou-se a figura do não-cidadão – aquele que não tem pátria e, logo, não tem direitos”[28].
A investigação empírica do qual se ocupa este trabalho, sempre foi motivo de inquietação. As diversas indagações sobre a essência e objetivo punitivos até a estrutura física em condições péssimas historicamente conhecidas, não deixam de povoar os materiais de exame. A precariedade estrutural e material perpassa os anos, não mais que um retrato do descaso da sociedade para com aquilo que fere os olhos e não se quer ainda conviver.
É neste cenário do não-cidadão que encontramos um cotidiano “paralelo” sendo (sobre)vivido atrás dos muros do Presídio Central de Porto Alegre, sobre o qual nos ocuparemos deste ponto em diante, buscando um diálogo entre sociedade e cárcere, um olhar de alteridade sobre o outro.

2. SOBRE AS GRADES DO PRESÍDIO CENTRAL DE PORTO ALEGRE

Localizado na zona leste da capital rio-grandense, no bairro Coronel Aparício Borges, na Rua do Presídio, foi inaugurado no ano de 1959, contava com seis pavilhões e capacidade para, incialmente, seiscentos e sessenta e seis (666) presos, ampliada posteriormente para dez pavilhões e dois mil (2.000) presos. Seu objetivo, quando da inauguração, era abrigar detentos provisórios (presos em flagrante, com prisão temporária ou preventiva decretada pela Justiça). No entanto, sua ocupação, ao tempo desta investigação é de, em média, quatro mil e quinhentos (4.500) presos, com o auge de superlotação no ano de 2010, com cinco mil e trezentos (5.300) presos[29]
O número de presos praticamente triplicou em quinze anos: em 1996 havia mil seiscentos e cinquenta e cinco (1.655) presos; já em 2012 são quatro mil trezentos e setenta e nove (4.379) presos divididos entre mil novecentos e quarenta e quatro (1.944) presos condenados e dois mil quatrocentos e trinta e cinco (2.435) presos provisórios. Atualmentemais da metade (2.589) estão presos por tráfico de drogas, o número de jovens adultos com idade entre dezoito (18) e vinte e nove (29) anos passa de três mil (3.000), e o nível de escolaridade, como regra, é baixíssimo[30].
Dados relevantes, que também merecem serem destacados, referem-se à saúde. O Relatório feito pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul[31] (Cremers) apontou que há apenas um médico para atender toda a população carcerária do PCPA, um ambulatório com quatro salas e dentro das galerias há “apenados doentes em confinamento com os sadios; presos com sífilis, AIDS, tuberculose, hepatite, dermatites e dermatoses”. A maior causa de mortes, nos Presídios da Região Metropolitana de Porto Alegre, é a Broncopneumonia, pneumonia e tuberculose.
 Sobre a reincidência criminal, o Juiz Sidinei Brzuska relata que, não raro,  “esse mecanismo amplificador de violência esta alicerçado em uma rede informal que envolve a recompensa por serviços prestados dentro da prisão”.[32] Quando o preso é colocado em liberdade, volta a delinquir em grande parte em função das dívidas adquiridas dentro da prisão e, também, pela falta de amparo e oportunidade em busca de trabalho.  
Há, atualmente, quatrocentos e cinquenta (450) servidores entre Brigada Militar, Susepe, Hospital Vila Nova, trabalhando no interior da casa prisional. Em 2011, o fluxo de presos foi de vinte e quatro mil e quinhentos (24.500) entre entradas[33]. No mesmo ano, o fluxo de visitantes foi de duzentos e cinquenta e cinco mil seiscentos e um (255.161).
A CPI do Sistema Carcerário considerou o PCPA o pior presídio brasileiro e o descreveu como uma “verdadeira masmorra”. O promotor de justiça, Gilmar Bertolotto, quando da realização da CPI, declarou “temos um déficit de civilidade com o sistema carcerário”[34]Nos bastidores deste cenário caótico narrado, ainda de maneira escassa e singular, já estão ocorrendo alguns programas que buscam ser uma tentativa de oportunizar uma mínima condição de civilidade aos apenados que passam a, de fato, viver em meio a todo o lixo vivenciado diariamente por eles.
Os programas ainda contam com um número pequeno de participantes e com diversas limitações quanto à concretização das atividades em função do espaço e sua precariedade. Ainda assim, possuem importância fundamental na construção de um ambiente menos degradante e mais humano.
Dentre os programas[35] estão: Reciclagem (realização da Vonpar, Ministério Público, Campo da Tuca); Tratamento de Dependência Química (realização do Hospital Vila Nova, Ministério Público, Susepe, dentre outros colaboradores); Combate a Tuberculose(ONG Fundo Global, desde 2007);  Atividades na Ala das Travestis (ONG Igualdade RS);HumanizArte (Coordenadoria da Juventude da Susepe - projeto desenvolvido com os apenados do regime semiaberto, que trabalha a expressão através do grafite); Projeto Direito no Cárcere (Jornal Estado de Direito em parceria com o Ministério Público, Susepe, Vara de Execuções Criminais, Brigada Militar).

UM OLHAR SOBRE O CAOS: AINDA HÁ O OUTRO
Um destes esforços, o Projeto Direito no Cárcere[36] é desenvolvido no Presídio Central de Porto Alegre, na Galeria E1, desde agosto de 2011, coordenado por Carmela Grüne e conta com o apoio do Ministério Público do Rio Grande do Sul, da SUSEPE, da Brigada Militar e da Vara de Execuções Criminais. Tem como objetivo resgatar a autoestima dos apenados do estabelecimento carcerários, (re)descobrindo e retomando as capacidades e sonhos para uma vida que valha a pena ser vivida. Instiga formas de sensibilização do interesse pelo conhecimento, não apenas do Direito, mas de toda forma de cultura, arte e educação. Utilizando as mais diversas manifestações artísticas e culturais que sirvam como plataforma de expressão dos detentos, fortalecendo a motivação desses com reflexos diretos na sua família e na comunidade.
Para trabalhar as formas de sentir o Direito, os encontros são subdivididos em diferentes atividades, procura estimular a emoção e o prazer lícito a partir do estímulo do imaginário social e da capacidade criativa. Busca-se um novo olhar sobre quem vive o cotidiano carcerário, propondo oportunizar experiências diferentes para o desenvolvimento na calamitosa execução da pena, quiçá repensando seus ideais futuros. Vislumbrando propiciar novas formas de lidar com as mazelas sociais, verificando-se na arte um meio de sensibilização do próprio direito e uma condição de sobrevivência menos dolorosa.
Se o ambiente físico do Presídio é opressor, senão somente pela baixa infraestrutura, sem espaço adequado para práticas recreativas, as atividades, por exemplo, de dança acontecem em uma sala comum, sem iluminação adequada, piso e ventilação. Algumas dificuldades precisam sempre ser vencidas, principalmente por tratar-se de presos em tratamento de dependência química. Ainda assim, a arte e seus infinitos modos tem auxiliado para uma recuperação mais positiva aos detentos, que passam a com-viver com um ‘mundo’, mediando-se uma possibilidade de inclusão[37]. Mesmo em um meio tão penoso como este, a criatividade artística torna-se representação singular de uma forma de exorcizar a dor e o sofrimento, bem como se transforma numa fonte para despertar sensibilidades únicas.
A realização do projeto tem rompido barreiras entre o olhar da sociedade e o cárcere. Todos os encontros são registrados através de vídeos e fotografias, abrindo espaço para os presos se expressarem. Os materiais são publicados nos canais virtuais relacionados ao projeto com uma boa repercussão, aceitação e apoio da sociedade civil. O Google Analytics dimensiona que o acesso aos canais do Youtube (/estadodedireito; /carmelagrune; /vlogliberda) contabilizam mais de quatrocentos e noventa mil (490) acessos de internautas de diferentes Estados e Países desde a implementação do projeto.
Sobre a arte:
“A arte é uma sensibilidade, como se fosse a terceira visão, e a sensibilidade é incontrolável, a sensibilidade dele fez com que ele composse essa música, ele não teve nenhum impedimento. O sistema carcerário gradeou, limitou ele(...) mas ninguém impede dele captar uma emoção e escrever...” [38].

Para os integrantes fica claro que a arte tem sido um meio que permite uma real melhora na perspectiva de vida tanto sob a perspectiva daquele que aguarda a liberdade com alguma esperança futura, mas tem seus efeitos alargados às próprias famílias que passam a testemunhar o preso em sua própria descoberta. Ações como a deste projeto, clara ferramenta de redução de danos e de transformação do cárcere desde o face-a-face com o outro, trazem aquilo que realmente pode fazer questão: nada mais importante quando se verifica a arte como um potencializador do encontro entre universos impossíveis.







CONCLUSÃO
“É o reino do acaso e do erro, que nele tudo governam sem piedade.
As grandes e as pequenas coisas: ao seu lado, com chicote na mão, marcham a patetice e a maldade; também se vê que tudo que é bom custa a aparecer, que tudo que é nobre e sensato se chega a manifestar, a realizar, a dar a conhecer, apenas muito raramente; que ao contrário, o incapaz e o absurdo em questão de pensamento, o sem graça, o sem gosto em questão de arte, o mal e a perfídia em matéria de conduta dominam, sem serem desapossados, salvo em instantes. Em todo gênero humano, o excelente está reduzido ao estado de exceção”.
Arthur Schopenhauer.

O excelente reduzido ao estado de exceção nos instiga a pensar que se o Estado de Exceção tem sido a regra, então devemos explorar as potencialidades do excelente que pode existir nessas exceções. Assim, em meio a uma realidade apavorada com seus “altos índices de criminalidade” midiaticamente postos, fica evidenciada a importância de abandonar as formas falaciosas do discurso oficial de ressocialização, o sentimento de vingança, e a legitimaçãoabsoluta do poder de controle do Estado, ineficientes em um sistema estéreo em reconhecimento dos sujeitos excluídos. Inarredável é uma interação da sociedade de modo a dialogar com as diversas realidades que permeiam o cotidiano na busca por uma diminuição dos impactos das mazelas sociais.
Propôs-se assim um pensar diferente sobre o sistema carcerário brasileiro, que busque uma valorização do apenado como pessoa dotada de subjetividade ímpar, bem como potencializador de instantes decisivos num período de execução da pena menos doloroso. Transformado o sofrimento e a dor de sujeitos sobre os quais recaíram a condenação ao desespero, é o entusiasmo de um futuro não petrificado que se avizinha.


[1] GOMES, Jorge Luis de Oliveira. O Hóspede do Cárcere. Porto Alegre: Impresso nas oficinas da Gráfica CEUE, 1997; 1ª edição. Jorge Gomes não integra o Projeto Direito no Cárcere, mas também cumpre pena no PCPA, possui produção poética e de composição musical, além do livro mencionado. O conhecemos no Seminário “O Presídio Central e a realidade prisional: quantos presos queremos ter?”, realizado no dia 02 de agosto de 2012, onde tivemos acesso ao livro.
[2] MELOSSI, Dario; PAVARINI, MassimoCárcel y fábricalaorigenes del sistema penitenciário1ª Ed. Madrid/Ciudad del Mexico:  Siglo Véintiuno Editores, 1980, p. 29-30.
[3] Neste sentido conferir: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 87-108.
[4] Neste sentido, insere-se o Projeto “Direito no Cárcere”, desenvolvido desde agosto de 2011, na Galeria E1 do Presídio Central de Porto Alegre, coordenado por Carmela Grüne (Diretora do Jornal Estado de Direito) que conta com o apoio do Ministério Público do Rio Grande do Sul, SUSEPE e da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, bem como com a participação de voluntários que tornam possível a realização de diferentes práticas dentro da galeria e/ou auxiliam na arrecadação de doações para os detentos.
[5] Cf. SALAS, Denis. La volonté de punir. Essai sur populisme pénal. Paris: Fayard/Pluriel, 2010.
[6] MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 424 e ss.
[7] ZAFFARONI, Eugênio RaúlEm busca das penas perdidas. Tradução e Vania Romando Pedrosa, Amir Loez da Conceição. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Revan1999.
[8] Cf. WACQUANT, Loïc. Os condenados da cidade: estudo sobre a marginalidade avançada.Tradução de João Roberto Martins Filho et al. Rio de Janeiro: Revan/FASE, 2001.
[9] Sobre o paradigma revolucionário do labeling approach, cf. BARATTA, Alessandro.Criminologia Crítica e Crítica do Direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos\Instituto Carioca de Criminologia, 1999, pp. 85-100.
[10] Dados disponíveis em: <http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=39&cod_conteudo=123>, último acesso em 18 de set. 2012.
[11] Cf. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed.. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
[12] SANTOS, J. Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Artigo disponível em: , último acesso em 17 de set. 2012. Ademais, ver o seu SANTOS, J. Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981, pp. 25-34. Quanto ao princípio do bem e do mal, que também orienta a dita ideologia de defesa social imperante no discurso penal até hoje, ver BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito penal, pp. 59-68.  
[13] Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 207 a 227 e MELOSSI, Dario; PAVARINI, MassimoCárcel y fábrica, p. 29-30.
[14] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 115 ss.
[15] Cf. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
[16] WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3ª ed., revista e ampliada. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[17] FOUCAULT, Michel. “Préface”. In: Leurs PrisonsAutobiographies de prisonniers et d´ex-détenus américains. JACKSON, Bruce. Traduit de L´Anglais par Maurice Rambaud. Paris: Plon, 1975, pp. II-III.
[18] BAUMAN, Zigmunt. Globalização e as Consequências Humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 85 ss..
[19] MARINHO, Eduardo. “Que vencedor, que nada”in: Crônicas e Pontos de Vista.  Rio de Janeiro: Navilouca, 2011, p. 35 – 37.
[20]SANTOSMiltonTécnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. 4ª Ed. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 13, 21, 29, 50.
[21] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2000,   p. 68.
[22] SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. 4ª Ed. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 80 – 83, 261.
[23] BAUMAN, Zigmunt. O Mal-Estar na Pós-Modernidade. Tradução de Mauro Gama (et. al.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.57.
[24] PEREIRA, Gustavo de Lima. A pátria dos sem pátria: direitos humanos e alteridade. Porto alegre: Ed. UniRitter, 2011, p.65.
[25] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria e garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 207.
[26] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte. UFMG, 2002.
[27] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, p. 196.
[28] PEREIRA, Gustavo de Lima. A pátria dos sem pátria, p.67.
[29] Dados referidos pelo Diretor do Presídio Central, Tenente-Coronel Leandro Santiago, no painel “A questão Central – Uma panorâmica do PCPA”, no Seminário “O Presídio Central e a realidade prisional: quantos presos queremos ter?”, realizado no dia 02 de agosto de 2012 no auditório do Presídio Central de Porto Alegre. Disponível também em <http://www.susepe.rs.gov.br>.
[30] Dados apresentados pelo Diretor do Presídio Central, Tenente-Coronel Leandro Santiago, no painel “A questão Central – Uma panorâmica do PCPA, no Seminário “O Presídio Central e a realidade prisional: quantos presos queremos ter?”, realizado no dia 02 de agosto de 2012 no auditório do Presídio Central de Porto Alegre. Disponível também em <http://www.susepe.rs.gov.br>.
[31] Dados referidos pelo Juiz da Vara de Execuções Criminais, Sidinei Brzuska, no painel “A questão Central – Uma panorâmica do PCPA”, no Seminário “O Presídio Central e a realidade prisional: quantos presos queremos ter?”, realizado no dia 02 de agosto de 2012 no auditório do Presídio Central de Porto Alegre. Também em: AJURIS. Presídio Central: terra de ninguém. Porto Alegre: Jornal da Ajuris, fevereiro a julho de 2012. Ano XVI, n. 276. Seção Crise Carcerária, p. 8 – 12.
[32] AJURIS. Presídio Central: terra de ninguém. Porto Alegre: Jornal da Ajuris, fevereiro a julho de 2012. Ano XVI, n. 276. Seção Crise Carcerária, p. 8 – 12.
[33] Dados apresentados pelo Diretor do Presídio Central, Tenente-Coronel Leandro Santiago, no painel “A questão Central – Uma panorâmica do PCPA, no Seminário “O Presídio Central e a realidade prisional: quantos presos queremos ter?”, realizado no dia 02 de agosto de 2012 no auditório do Presídio Central de Porto Alegre. Disponível também em <http://www.susepe.rs.gov.br>.
[34] BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Edições Câmara, série Ação Parlamentar n. 384, 2009, p. 166. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2701>, último acesso em 26 ago. 2012.
[35]Informações disponíveis no Site da Susepe: <http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=4&cod_conteudo=829>, último acesso em 28 de ago. de 2012.
[37] Dança no Direito no Cárcere disponível no link: .
[38] Documentário “Luz no Cárcere”, disponível em VlogLiberdade: http://www.youtube.com/watch?v=p506zy5utN4&feature=plcp, último acesso em 19 de set. 2012.

1 comentários:

Sayuri Matsuo disse...

Excelente estudo e artigo muito bem elaborado. É uma temática muito interessando, porque no Brasil parece que muitas vezes o direito civil serve apenas para alguns, então os direito humanos tem que agir para que pessoas que nem as mencionadas no artigo não sejam prejudicadas.